nov

2014

UMA LEI “MATEMÁTICA” PARA A CULTURA

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Alessandra Drummond
Rafael Neumayr

O Projeto de Lei (PL) que pretende revogar a atual lei federal de incentivo à cultura (Lei Rouanet), propondo em seu lugar uma nova lógica de financiamento às artes, à cultura e à economia criativa (Procultura), finalmente chegou ao Senado. Depois de tramitar por 4 anos na Câmara dos Deputados como PL 6.722/2010, a redação final – sensivelmente diferente da original, em razão de alguns “substitutivos” – foi recebida agora pela outra casa do Congresso, onde tramita como Projeto de Lei da Câmara 93/2014. Aprovado nesse âmbito, ele seguirá para sanção presidencial, o que talvez ocorra ainda em 2014.

Uma vez publicada a nova lei, sua vigência se iniciará em 180 dias, tendo o Poder Executivo 120 para publicar a regulamentação, normalmente composta por um decreto e uma instrução normativa do Ministério da Cultura (MinC).

A leitura corrida do PL não é fluida. Seguindo o exemplo da legislação do audiovisual, ele é sustentado em grande parte em números e percentuais. São diversas as fórmulas para se calcular a distribuição dos recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC), o limite percentual anual de renúncia fiscal dos incentivadores, a pontuação dos projetos submetidos ao Mecenato (investimento privado via renúncia fiscal), bem como o percentual de renúncia que cada projeto pode oferecer aos seus patrocinadores. Além disso, há situações que fogem da regra – casos especiais eleitos pelo legislador – e desdobramentos dos mesmos cálculos. É fácil se perder em tantos números.

Antes da matemática, é importante destacar os altos e baixos do PL. Ele fez bem ao eleger o FNC como principal mecanismo de financiamento – o que é afirmado no art. 10 –, visando a amenizar o direcionamento empresarial da cultura decorrente do Mecenato, hoje o mecanismo mais utilizado. Contudo, pecou ao determinar que o investimento anual no FNC nunca seja inferior ao do Mecenato. Não nos parece fazer sentido, à primeira vista, essa disputa orçamentária interna. Uma coisa é estabelecer que pelo menos 40% da dotação destinada ao MinC sejam revertidos ao FNC, como fez o PL no caput do artigo 55. Isso funciona muito bem para fins de planejamento orçamentário. Mas estabelecer que “é garantido ao Fundo Nacional de Cultura valor nunca inferior ao montante da renúncia fiscal disponibilizado para o incentivo” pode restringir o potencial de captação dessa última fonte, levando ao encurtamento dos recursos da cultura de maneira global. Afinal, ainda que o FNC tenha um orçamento expressivo, caso a arrecadação efetiva em determinado ano não seja bem sucedida, os projetos aprovados no modelo da renúncia fiscal sentirão na pele os efeitos desse “fogo amigo”, já que haverá um teto intransponível de arrecadação. É como se um mecanismo puxasse o outro para baixo, o que não é saudável, salvo melhor juízo.

Ainda em relação ao FNC, 30% da sua arrecadação serão destinados a fundos estaduais e municipais (operação fundo a fundo), com vistas à descentralização e melhor distribuição dos recursos, o que tende a ser algo positivo. Mas tal operação só será realizada com os entes que tiverem aderido às diretrizes do Sistema Nacional de Cultura, mediante a criação de um fundo regional, de uma instância colegiada de política pública e de um plano de cultura.

No que respeita ao Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart), previsto na Lei Rouanet mas nunca adotado na prática, o PL o mantém, como condomínio fechado que oferece quotas (ações) de projetos sustentáveis economicamente para compra pelo público em geral. Não fosse a possibilidade de os adquirentes das quotas deduzirem do Imposto de Renda (IR) até 50% do investimento, o modelo seria praticamente idêntico ao atual.

É no âmbito do Mecenato que as mudanças serão mais sentidas. O PL propõe um sistema de pontuação dos projetos, indicando uma matriz de cálculo, de modo que os mais bem avaliados oferecerão um percentual superior de renúncia aos seus incentivadores. Assim, caem por terra as duas faixas de renúncia fiscal da Lei Rouanet, de 100% e de percentuais menores, distribuídas segundo a natureza artística dos projetos. Realmente não faria sentido insistir nessa sistemática, que leva a enormes disparidades.

Pelo novo modelo, qualquer projeto poderia, em princípio, oferecer ao incentivador 100% de renúncia ou ser alcançado pela menor alíquota, qualquer que fosse a sua natureza. Tudo vai depender da pontuação, que pode chegar a 23 pontos: os projetos que não conseguirem pelo menos 8 serão reprovados; entre 8 e 10 pontos a alíquota é de 30%; de 11 a 12 ela é de 50%; de 13 a 15 pontos, 70%; a partir de 16 pontos, garante-se renúncia integral dos valores patrocinados.

O PL indica ainda casos cujo patamar de renúncia independa da pontuação obtida. É o que acontece com projetos que levem no título a marca do patrocinador, cuja renúncia será de no máximo 50%. No outro extremo, ela será sempre de 100% quando o incentivo se der como doação (repasse financeiro sem finalidade promocional, ao contrário do patrocínio), ou quando ele for direcionado a projetos de conservação e restauração de bens tombados, de identificação, promoção e salvaguarda do patrimônio cultural, de restauração de obras de arte, documentos e bens de valor cultural ou apresentados por cooperativas de artistas ou “produtores independentes” (não ligados a grandes empresas do entretenimento) que tenham “pequeno porte” (receita bruta anual até R$1,2 milhão).

Por fim, quem investir em projetos de instalação e manutenção de equipamentos culturais situados nos Territórios Culturais Prioritários eleitos pelo MinC também se beneficiará com a renúncia integral, podendo as pessoas jurídicas inclusive lançar o valor como despesa operacional em alguns casos, o que amplia os benefícios.

Outra grande inovação é a possibilidade de pessoas físicas realizarem doações até a Declaração Anual de Ajuste do IR, que se encerra no mês de abril, com limite de 3% do IR devido. Tal sistema já é realizado com sucesso pelos Fundos da Infância e da Adolescência (FIA), sendo uma grande conquista a sua apropriação pelo PL. No modelo atual, as pessoas físicas também podem realizar doações à cultura com incentivo fiscal; todavia, devem fazê-lo até dezembro do ano anterior, o que acaba por desestimular a prática, já que o doador tem que esperar vários meses para obter o benefício fiscal.

O PL ampliou, ainda, o limite anual do IR a ser direcionado aos projetos culturais. Os patamares iniciais continuam iguais, 6% do IR devido pelas pessoas físicas e 4% pelas pessoas jurídicas de lucro real. Mas o incentivo poderá chegar a 8%, se o que ultrapassar os patamares iniciais (6% e 4%) for investido em projetos de produtor independente ou de pequeno porte.

Mas para empresas com faturamento superior a R$300 milhões a regra é outra. Poderão investir até 6% do seu IR, desde que os primeiros 4% sejam destinados a projetos do Mecenato e os 2% restantes ao FNC. Mas para doar o último ponto percentual (entre 5% e 6% do IR anual), os valores relativos a essa faixa deverão respeitar a seguinte proporção: o valor doado ao FNC tem que representar pelo menos 20% do investido no Mecenato no primeiro ano, 30% no segundo, 40% no terceiro e 50% a partir do quarto ano de vigência da lei. Uma alteração negativa, contudo, se destaca. O PL, apesar de aumentar para 20% os custos administrativos de um projeto, enquadra aí a comissão do captador de patrocínios. Como ela é de 10% normalmente, o proponente só poderá usar 10% do projeto para cobertura de custos administrativos, ao invés dos 15% garantidos hoje.

Feita essa primeira leitura do PL, a sensação é de que os pontos positivos se sobressaem, apesar do “estilo árido” adotado pelo legislador. Agora é aguardar a sua tramitação no Senado e avaliar se as intenções dos mentores da nova norma se concretizarão na prática. Se para o bem ou para o mal, tudo indica que 2015 será um ano repleto de novidades!