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2018

A nova regulamentação da Lei Roaunet

Por Alessandra Drummond
Editoria Rafael Neumayr e
Alessandra Drummond

 

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Em 22 de março, o Ministério da Cultura publicou a nova regulamentação da Lei Rouanet. Trata-se da Instrução Normativa 1/2017, que estabelece procedimentos para apresentação, recebimento, análise, aprovação, execução, acompanhamento, prestação de contas e avaliação de resultados de projetos culturais, aprovados no mecanismo de incentivo a projetos culturais, o “Mecenato”, do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac).

Segundo informações do próprio Ministério da Cultura, a regulamentação tem entre seus principais objetivos tornar menos concentrado o acesso aos recursos da Lei Rouanet e mais democrática a fruição dos bens e serviços culturais pela população. Além disso, a norma promete tornar a execução dos projetos mais transparente à sociedade e – mediante a criação de novos meios de monitoramento dos projetos –aumentar a capacidade de controle e fiscalização do MinC.

A nova IN revogou a normativa anterior, de 2013, bem como a Portaria 116/2011, essa
que tratava do enquadramento dos projetos nos artigos 18 e 25/26 da Lei Rouanet. Além disso, a nova IN incorporou algumas súmulas da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) e também recomendações que vinham sendo feitas pelos órgãos de controle e pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Segundo a nova regulamentação, suas disposições se aplicam aos projetos em andamento, respeitados os direitos adquiridos. Na prática, isso equivale a dizer que os projetos propostos ou aprovados antes da entrada em vigor da nova normativa, encontram-se ainda sujeitos às normas vigentes à época da sua aprovação. Desta forma, apenas os projetos apresentados a partir de 10 de abril de 2017, data em que foi reaberto o novo sistema eletrônico de admissão de propostas culturais, o “Salic”, estão integralmente sujeitos à nova regulamentação.

Com o intuito de dar mais transparência à utilização dos recursos foi ampliado o canal
de acompanhamento público dos projetos na Internet, chamado “Salic Cidadão”. Com efeito, a nova norma determina que são públicas as informações dos projetos, incluindo sua planilha orçamentária, seu objeto e objetivos, ficha técnica, definição de produtos, logística, plano de distribuição e demais elementos que os compõem. Além disso, a IN estabelece que não existe sigilo fiscal em relação à utilização dos recursos incentivados, de modo que o acesso a informações será pleno.

Como agora os projetos serão disponibilizados na íntegra para qualquer interessado, o
MinC cuidou de esclarecer que “a mera concepção de projeto cultural não constitui objeto passível de proteção por direitos de autor ou direitos conexos, ressalvados os eventuais conteúdos previamente caracterizados como criação intelectual”. Ressalva-se, porém, que na nossa opinião o referido dispositivo se refere ao “formato” e ao “objeto” dos projetos; não propriamente aos seus textos, os quais ganham sempre proteção pela Lei de Direitos Autorais como obra literária.

Outro ponto importante é a declaração de que os recursos oriundos das doações e patrocínios incentivados são considerados recursos públicos. Com isso, a nova IN reconhece que os referidos recursos não são tributáveis pelo Imposto de Renda, pela CSLL, pelo PIS, pela Cofins e pelo Imposto sobre Serviços, contrariando algumas recentes decisões de órgãos de arrecadação, a exemplo da própria Receita Federal do Brasil. Vale destacar que dispositivo semelhante está previsto no projeto da nova lei Federal de Incentivo à Cultura, ainda em análise pelo Poder Legislativo.

Em função da complexidade das normas administrativas e tributárias que envolvem a execução dos projetos, a IN determina que serviços contábeis e jurídicos sejam obrigatoriamente previstos nas planilhas orçamentárias, sendo considerados indispensáveis à sua correta gestão. O mesmo vale para auditoria externa, para projetos acima de R$5milhões.

A normativa estabelece, ainda, que o proponente, seja pessoa física ou jurídica, deve possuir experiência na mesma área do projeto há, pelo menos, 24 meses: assim, um ator poderá apresentar um projeto de montagem de um espetáculo, mas poder ter dificuldades para aprovar um projeto na área da fotografia, por exemplo. Há, entretanto, uma exceção em relação ao tempo de experiência: caso seja o primeiro projeto de um proponente, e desde que o seu valor não ultrapasse R$200mil, ele não precisará demonstrar essa experiência anterior. Além disso, no caso de pessoa jurídica, a natureza cultural deverá ser comprovada por meio da existência, nos registros do CNPJ da proponente, de código de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) equivalente à área dos produtos apresentados na proposta.

Em decorrência do “princípio da não concentração”, previsto na própria Lei Rouanet, estabeleceu-se limites de quantidade (de 4 a 10) e de valor de projetos (de R$700 mil a R$10 milhões) por proponente, a depender da sua natureza jurídica. Vale ressaltar que tais limites poderão ser 50% maiores para projetos integralmente realizados nas regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste. Mas a IN também criou limites por segmento (artes cênicas, música, audiovisual etc.) – o que, contudo, dependerá definição a ser feita ano a ano pelo Ministério –, bem como limites de valor de projetos por número de beneficiários atendidos: o produto cultural decorrente do projeto (como um livro ou umespetáculo) deve ter custo por beneficiário de até R$ 250,00. Esse valor é determinado pela divisão do custo do projeto pelo númerode beneficiários atendidos.

Agora há, também, vedação à apresentação de propostas cuja receita total prevista – ou seja, renda decorrente da comercialização dos produtos culturais, como livros e ingressos –, supere o custo do projeto, considerando todas as fontes de financiamento público previstas na planilha; o objetivo do MinC nesse ponto parece ser dificultar a aprovação de projetos com perspectivas de grande retorno econômico.

Não há limite de valores, no entanto, para os seguintes projetos: planos anuais ou bienais; de conservação e restauração de imóveis, monumentos, logradouros, sítios, espaços e demais objetos, inclusive naturais, tombados por qualquer das esferas de poder; de identificação, promoção e salvaguarda do patrimônio cultural; de preservação de acervos de reconhecido valor cultural pela área técnica do MinC; de manutenção de corpos estáveis de artes cênicas e música; de construção e implantação de equipamentos culturais de reconhecido valor cultural; e de cooperativas que possuam, no mínimo, 20 pessoas físicas cooperadas e que estejam há dois anos em atividade.

Outra novidade é a possibilidade de apresentação de planos de atividades não só anuais, mas também bienais, o que é uma antiga reivindicação dos equipamentos museais e culturais. A redação atual define os planos anuais ou bienais de atividades como sendo os projetos culturais apresentados por pessoa jurídica sem fins lucrativos que contemplem, por um período de 12 ou 24 meses coincidentes com os anos fiscais, a manutenção da instituição e das suas atividades culturais de caráter permanente e continuado, englobando os projetos e ações constantes do seu planejamento. Pela atual redação, verifica-se que o plano anual deve coincidir com o ano fiscal (01 de janeiro a 31 de dezembro de cada ano), diferentemente do previsto na Instrução Normativa anterior, que apenas definia a duração do plano anual como sendo de 12 meses, sem expressamente consignar que esse período deveria coincidir com o ano fiscal.
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Visando a tornar célere a aprovação de projetos e diminuir a sobrecarga oriunda da análise de milhares de propostas que jamais chegarão a captar recursos, a nova IN estabeleceu duas etapas na aprovação de propostas. Agora as propostas passarão inicialmente pela análise preliminar da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic) ou da Secretaria do Audiovisual (Sav), conforme o caso, quando será verificado o atendimento das condições de admissibilidade da proposta e se realizará seu enquadramento no artigo 18 ou 25/26 da Lei Rouanet. Ultrapassada essa fase, o proponente deverá captar no mínimo 10% dos recursos solicitados para que o projeto siga para homologação final, quando então serão emitidos o parecer das entidades vinculadas ao Ministério da Cultura (Funarte, FBN, IBRAM etc.) e o parecer da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) e será deliberada a aprovação ou reprovação pela autoridade máxima da Sefic ou da Sav.

Um dos maiores impactos causados pela nova Instrução Normativa são os artigos que reafirmam aquilo que já estava previsto na Lei Rouanet acerca da vedação de concessão de vantagens, financeiras ou materiais, ao patrocinador. A novidade ficou por conta da apresentação de uma lista exemplificativa do que são consideradas vantagens indevidas dos incentivadores, a saber: a comercialização do produto cultural em condições diversas das praticadas ao público em geral e/ou a delimitação espaços a público determinado; a veiculação de sua imagem institucional ou de seu nome em peças de divulgação diferentes das aprovadas pelo MinC; a determinação de execução de sessões de ensaios, apresentações, visitas ou quaisquer atividades associadas ao projeto cultural de caráter restrito ou com limitações de acesso; e o fornecimento de produtos ou serviços ao projeto cultural. Tais vedações – exceto a de fornecimento de produtos ou serviços ao projeto cultural – também se aplicam aos proponentes e coligadas, a qualquer fornecedor do projeto cultural ou a qualquer terceiro que de alguma forma esteja ligado ao projeto cultural ou sua execução.

Em relação às medidas de democratização de acesso, que objetivam tornar os produtos culturais mais acessíveis, a IN traz novas regras relativas à sua distribuição gratuita à população. A partir de agora, ela poderá ocorrer ao longo do projeto, ou, a critério do proponente, ser concentrada em uma ou mais apresentações, no caso de eventos; todavia, todas as categorias de produtos ou ingressos têm que ser objeto dessa distribuição, não podendo o proponente eleger um produto para esse fim e reservar os outros para serem comercializados. Quanto à forma de distribuição gratuita, os produtos poderão ser doados: a entidades que atendam camadas menos assistidas e com menor poder aquisitivo; mediante sorteio em canal a ser criado no website do MinC, tendo prioridade para recebimento os beneficiários de políticas sociais vinculadas ao Cadastro Único do Governo Federal; ou, excepcionalmente, diretamente pelo proponente, desde que tal distribuição se dê de forma impessoal e seja aprovada previamente pelo Ministério. Já em relação aos ingressos a serem postos à venda ao público em geral (para shows, espetáculos e similares), a normativa estabeleceu a quantia de R$ 150,00 como preço médio máximo permitido, o que corresponde a três vezes o valor do Vale Cultura.

Além disso, a IN 01/2017 torna obrigatório o oferecimento da chamada “contrapartida social”, definida como a ação presencial e gratuita orientada a alunos e professores de
instituições de ensino de qualquer nível – ao menos 50% devem ser destinados a instituições públicas –, visando à formação de plateia, a qual deve ser registrada em vídeo e disponibilizada gratuitamente na internet.

Outra grande novidade é a criação de “trilhas de controle” que efetuarão – de forma automatizada – o cruzamento de dados e documentos dos projetos desde sua propositura até seu encerramento, de modo a evidenciar eventuais “desvios” durante a execução. Referidas trilhas tem o objetivo de verificar: a regularidade do proponente e sócios; a regularidade da CNAE do proponente e do fornecedor; o atendimento ao princípio da não concentração (quantidade de projetos e valores por proponente); a existência de itens orçamentários concentrados por fornecedores; a regularidade de notas fiscais eletrônicas; a regularidade de beneficiários de ingressos gratuitos; o rol de incentivadores inativos; e a regularidade de captadores de recursos.

Por fim, a IN MINC 01/2017 prevê que a prestação de contas dos projetos será realizada em tempo real, no momento em que os gastos forem realizados, e não somente ao final do projeto, como de praxe, de modo a identificar imediatamente eventuais desvios e diligenciar sua correção pelo proponente.

A nova instrução normativa pode ser vista como uma reação do Ministério da Cultura à
crise que se instalou na Lei Rouanet a partir da criação de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara dos Deputados e da deflagração de operações da Polícia Federal que evidenciaram supostas fraudes na utilização dos benefícios da lei. Segundo o MinC, a redação da nova regulamentação contou com a colaboração de diversos órgãos federais de monitoramento e controle da utilização de recursos públicos. Espera-se que a nova regulamentação gere impactos positivos junto à sociedade, permitindo a continuidade do incentivo fiscal à cultura, indispensável ao fomento da produção cultural brasileira.

Alessandra Drummond é advogada. Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos – MG. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto de Educação Continuada – IEC da PUC/MG. Graduada pela Faculdade de Direito da UFMG. Vice-Presidente da Comissão de Direito do Audiovisual, da Moda e da Arte da OAB – MG. Sócia da Drummond & Neumayr Advocacia, escritório especializado em Direito do Entretenimento e da Artmanagers, empresa de gestão de projetos culturais e sociais.