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2009

A POLÊMICA DAS AULAS DE DANÇA EM CURSOS LIVRES

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Rafael Neumayr
Muito já foi dito sobre a dança e quaisquer novas palavras que pretendam transmitir a sua importância consistirão em esforço intelectual desnecessário. Todavia, permite-se repisar em um lugar-comum: a espontaneidade intrínseca à dança. De fato, a dança é inerente ao homem, o acompanhando ao longo de sua existência, perpassando as gerações, continuamente em mutação, tão familiar ao gênero humano quanto o hábito de falar – e, na maioria das civilizações, mais antiga que a própria fala.
Alguns praticam a dança sem maiores pretensões; outros a adotam como profissão, como artistas e professores. Quanto a estes últimos, é natural que aqueles que desenvolvam um maior talento estejam legitimados a passar adiante seus conhecimentos e sua técnica. Assim, a dança, desde épocas remotas, é ministrada livremente a alunos por dançarinos, coreógrafos, maitres de ballet e mestres de dança popular e folclórica.
Mas a partir do momento que ganharam lei específica (Lei 9.696/98), os educadores físicos – não todos, obviamente – vem tentando obter a exclusividade no ministério das aulas de dança em cursos livres, nas variantes de dança de salão, ballet clássico, dança contemporânea, jazz, danças tradicionais, entre outras. Argumentam em seu favor que a dança, por consistir em exercício físico e ter o corpo como principal instrumento, não pode ser ministrada por quem não tenha estudado formalmente a Educação Física.
É o caso da Resolução 46 do Conselho Federal da Educação Física (Confef), que conceitua o profissional da Educação Física como sendo aquele que é especialista em atividades físicas, inclusive em danças.
Não é difícil concluir que é pouco razoável limitar o ministério de aulas de dança à Educação Física. Em que pese ser importante que os professores sejam cautelosos para que os alunos não se machuquem e tenham plena consciência corporal – e a ferramenta mais eficiente para isso é conscientizar os professores através de boa instrução –, impor a eles a necessidade de possuir graduação ou diploma em Educação Física é um exagero. É esperar que educadores físicos possuam um talento que não lhes é intrínseco, nem lhes pode ser obrigatório: saber dançar. Afinal, antes de ser mero exercício físico, a dança é arte. Exemplo similar seria definir a exclusividade dos profissionais de fonoaudiologia em ministrar aulas de canto, as quais sempre poderão, potencialmente, ocasionar riscos ao aluno, se conduzidas de forma displicente.
Na mesma esteira, a Educação Física pretende ter exclusividade sobre as aulas de artes marciais e de capoeira. No primeiro caso, isso pode significar fazer ruir cadeias em alguns casos milenares de ensino de artes marciais. Seria impor a um professor de Terceiro Dan de Caratê, que tenha estudado no Japão, a obrigatoriedade de ser bacharel em Educação Física ou portar algum diploma expedido pelo Confef, sob pena de estar a exercer ilegalmente uma profissão. No segundo caso, seria engessar em burocracia e de maneira nitidamente excludente uma forma de expressão centenária de raiz popular, praticada pelos escravos, justamente como forma de manutenção e recriação da identidade africana diante da dominação cultural européia.
Mas a categoria dos profissionais da dança não se calou, ao menos não alguns dos seus principais representantes. Ao contrário, estes se esforçam para fazer tombar as fortes imposições provenientes de um Conselho Profissional com o qual não se identificam e não querem se vincular. Assim é que providências já foram tomadas no âmbito legislativo e no Judiciário.
Desde 2001 lutas vêm sendo travadas no Congresso Nacional: conseguiu-se derrubar um Projeto de Lei (PL) que pretendia agrupar na Lei da Educação Física os professores de dança; avançou-se bem com o PL 7.370/2002, do Deputado Luiz Antônio Fleury e de relatoria da Deputada Alice Portugal, que determinava a não sujeição dos profissionais de dança, artes marciais e ioga à fiscalização dos Conselhos de Educação Física, projeto esse que foi aprovado por duas Comissões da Câmara dos Deputados mas que, em lapso procedimental, foi arquivado, após quase cinco anos de tramitação; por fim, um novo projeto foi apresentado em 2007 (PL 1.371) por Alice Portugal, com o mesmo objeto do PL arquivado, mas que caminha a passos lentos.
No âmbito do Judiciário, a maioria das ações que tratam do tema – ações civis públicas, essencialmente – tem apontado a ilegitimidade do mencionado Conselho para realizar ingerências, cobrar anuidades e aplicar penalidades aos professores de dança. Costuma-se concluir nesses julgados que a imposição encabeçada pelo Confef se choca inclusive com os direitos fundamentais do livre exercício profissional e da liberdade de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, previstos no art. 5º da Lei Maior. Através de tais ações civis públicas, atualmente alguns Estados – ou seja, todos os profissionais da dança que atuem nesses territórios – já se encontram resguardados, ao menos temporariamente, por meio de liminares, contra as imposições do Confef.
Há também outros recursos judiciais que podem ser utilizados individualmente por quem se considerar lesado, como mandados de segurança e ações ordinárias. E pode-se com segurança afirmar que o grande número de ações ganhas pelos profissionais da dança em detrimento do Conselho de Educação Física lhes garante um forte quadro favorável.
No entanto, artistas não tão bem assessorados acabam cedendo à forte pressão do Confef. Além disso, algumas academias e escolas de dança no Brasil contratam somente professores de dança formados em Educação Física. E tudo isso enfraquece as conquistas já alcançadas. Portanto, se a pretensão é realmente frear tal processo, é necessária a conscientização e a ação conjunta de toda a classe dos profissionais da dança.
Não se pretende, aqui, se posicionar negativamente quanto à necessidade de professores de dança dominarem questões relativas a segurança corporal. Deve ser incessante o combate aos maus profissionais, que existem em todas as áreas, inclusive na Educação Física. O que se deve evitar é a atuação arbitrária dos Conselhos Profissionais, que em alguns casos, impõem regras de cima para baixo, sem necessariamente agir em conformidade com os interesses e as práticas das categorias que supostamente representam.

(Publicado originalmente em: periódico cultural Letras, Setembro de 2009.)